Jacarepaguá cultural

16 de agosto de 2013


Museu Bispo do Rosário, Teatro Sesi e exposições mensais na Cidade de Deus revelam um novo circuito cultural periférico na cidade

Luis Pedro Ribeiro e Rafael Bolsoni Bastos

O evento estava marcado para começar às 17h. Como de costume, chegamos antes ao local. “Espaço Conexão Cultural”, dizia a faixa na entrada do espaço que fica embaixo do viaduto da Linha Amarela, na altura da saída 1. Pelas paredes, alguns grafites. Um deles, como se estivesse se escondendo da cabine de polícia localizada no outro lado da rua, sintetizava a ideia que tínhamos da Cidade de Deus “pós-UPP”: “Siga sonhos, não ordens”. Verdade ou não, estávamos ali em função de outra síntese. Photo Síntese, para sermos mais exatos.

Primeiro fotoclube da região, o coletivo fotográfico Photo Síntese inauguraria seus trabalhos naquele sábado, 25 de maio, com uma exposição de fotos históricas da Cidade de Deus, além da exibição de um filme – que não ocorreu devido a problemas técnicos. De acordo com a estudante Anna Eduarda Cardoso, de 17 anos, integrante do grupo, o projeto pretende oferecer oficinas de fotografia aos moradores e a outros interessados. O coletivo, ainda segundo Anna, realizará encontros mensais no Espaço Conexão Cultural, que ocupa o antigo Mercado Popular da Cidade de Deus (cujo fluxo de pessoas, atualmente, gira em torno de um sex shop e uma agência dos Correios).


Conexão Cultural pretende oferecer oficina de fotografia aos moradores
O grupo é formado por moradores da região e faz parte da Agência Redes para Juventude, um projeto maior que vem sendo implantado desde 2010 entre jovens de 15 a 29 anos nas comunidades pacificadas (Batan, Borel, Cantagalo/ Pavão-Pavãozinho, Cidade de Deus, Providência, Rocinha e outras). Apesar de o tráfico continuar atuando em grande parte dessas comunidades, algumas práticas culturais tornaram-se possíveis. “Antes era muito difícil, pois éramos proibidos de tirar fotos aqui. Os ‘meninos’ não deixavam”, disse Carol Lima, de 16 anos, integrante do Photo Síntese.

Baseada numa metodologia que visa à “capacidade de agir” – a cartilha disponível para download no site do Redes informa que não se trata de empreendedorismo –, a agência fomenta a criação de projetos multiculturais. Os aprovados recebem R$ 10 mil de patrocínio da Petrobras para sua estruturação. Na Cidade de Deus, há quatro deles: o próprio Photo Síntese, Movimentos (dança), Spa Esportivo (voltado para a prática de atividades físicas entre idosos) e Conexão Cultural (descobrimos que, além de dar nome ao espaço, também é um projeto da agência). 

Apesar da variedade de ações – teatro, artes visuais, dança e música –, a procura por parte dos moradores ainda é baixa. “Ainda não conseguimos atingir um público amplo. Basicamente, recebemos os artistas locais e os amigos de fora”, contou o ator Marcelo Magano, de 25 anos, morador da Cidade de Deus e membro do Conexão Cultural. 

O único (e desconhecido) museu de Jacarepaguá

A alguns quilômetros dali, na Taquara, funciona outro ponto de cultura também pouco conhecido na região. O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea fica dentro da antiga Colônia Juliano Moreira, instituição psiquiátrica. O local abriga exposições de arte e oferece oficinas de capoeira, desenho e pintura, dança, além de fotografia e vídeo. Desde 25 de março estão em cartaz as mostras “Ressuscita-me” e “Sem fronteiras”, cujo público principal são estudantes das escolas municipal e estadual (além das 17 crianças do Espaço de Desenvolvimento Infantil da Colônia, que nos fizeram companhia na visita, outras 325 pessoas assinaram a lista de presença da exposição). Em cartaz até 14 de setembro, funciona de segunda a sábado, das 10h às 17h. 

Vinculado à Secretaria de Saúde e Defesa Civil, o Museu Bispo do Rosário sobrevive graças ao financiamento privado: o Instituto Votorantim e a Votorantim Cimentos são patrocinadores. Através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, no âmbito nacional e da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, empresas que doarem verbas ou patrocinarem projetos culturais podem deduzir 4% do Imposto de Renda (IR) e até 20% do Imposto Sobre Serviços (ISS), respectivamente. Procurada para esclarecer o funcionamento da Lei do ISS no município do Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Cultura não retornou às ligações e aos e-mails até o fim desta matéria.

Mesmo não fazendo parte do circuito cultural mais privilegiado do município – que engloba as regiões do Centro e Zona Sul –, a Baixada de Jacarepaguá ainda conta com outros dois centros de cultura: a Lona Cultura Jacob do Bandolim, no Pechincha, e o Teatro Sesi, na Freguesia. 

Para a professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ana Lucia Enne, o maior fluxo de produção cultural nas regiões periféricas é reflexo do momento por que passa a cidade do Rio de Janeiro. Apesar disso, a grande mídia não veicula significativamente esses circuitos alternativos em seus canais. A representação da cultura periférica nas telenovelas e programas de auditório baseia-se nos bailes funk e charme e, agora, no chamado “passinho”, um estilo de dança mais flexível que virou febre nas comunidades. “A grande mídia é malandra. Transforma o ‘passinho’, que tem um grande potencial resistente ao quebrar o preconceito homofóbico, numa ‘gracinha dos pobres’”, diz Enne.


‘Eu não pinto porque sou maluco; eu pinto porque sou artista’

Gilmar: doença não impede paixão do artista pela pintura
Chapéu na cabeça, calça jeans personalizada com pinceladas ao longo das pernas, cordões no pescoço... É com esse visual que o artista plástico Gilmar Ferreira, 47 anos, desfila pelas ruas da Cidade de Deus, onde mora desde os 3 anos. “Esses aqui são os meus amigos repórteres”, dizia ele para quem passasse por nosso percurso, do ponto de ônibus até sua casa, num dos prédios conhecidos como “apês”. Após chegarmos ao apartamento e tomarmos o suco de caju que ele fez questão de preparar para as visitas, começamos a entrevista.
Filho de uma artesã e de um restaurador de automóveis antigos, Gilmar começou a pintar aos 7 anos. Durante seus 40 anos de produção artística, expôs trabalhos nos mais diversos espaços. Onde lhe derem um cantinho, ele apresenta suas telas. Shoppings, Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea e até o Museu Nacional de Belas Artes já receberam algumas de suas obras. Mas o que Gilmar exibe com mais orgulho são as dezenas de entrevistas concedidas às mais diversas mídias, do jornal do bairro até grandes veículos como O Globo. Todas são cuidadosamente arquivadas em duas pastas, que já estão lotadas. “Minha mãe faz questão de recortar e guardar todas”. 
Apesar de ter apresentado seus quadros e trabalhos visuais em programas conhecidos, como o Xuxa Park, em 1999, e de ter vendido obras para celebridades como Pedro Bial – para quem vendeu, após exposição na Bienal de São Paulo, um quadro por R$ 500,00  –, Gilmar ainda sofre preconceito, tanto por sua arte quanto por sua patologia – ele tem esquizofrenia, imperceptível se não fosse sua dificuldade na fala. “A periferia tem que mostrar que também produz cultura. É importante reconhecer o trabalho como arte periférica. Também já fui discriminado por algumas pessoas da grande imprensa por causa do meu problema. Uma vez, uma repórter me revelou que tem um crítico importante dentro da Rede Globo que diz que pinto porque sou maluco. Eu não pinto porque sou maluco; eu pinto porque sou artista”, contou, em tom triste.
A dificuldade financeira também atrapalha na hora da produção. Sem ter apoio do Estado ou de empresas privadas, o dinheiro para a compra de suas tintas e telas vem do trabalho realizado num ateliê na Colônia Juliano Moreira, onde ficou internado durante vários anos, e de uma pequena aposentadoria que recebe da Guarda do Exército pelos anos de serviço prestado.
O objetivo maior do artista é conseguir verba para realizar dois projetos culturais na Cidade de Deus: Arte na Praça, que visa promover durante dez dias oficinas de pintura, exposições e instalações, utilizando material reciclável, com crianças e adolescente da comunidade; e a criação da Escolinha de Artes Cores da Alegria, outro projeto, com maior duração, também voltado para as crianças. 
Saímos de sua casa com os dois projetos em mãos e uma certeza: os planos de Gilmar não serão realizados por enquanto. Abertas desde 14 de junho, as inscrições para o I Programa de Fomento à Cultura Carioca da Secretaria Municipal de Cultura não podem ser feitas por pessoas físicas – apenas pessoas jurídicas podem ser contempladas com parte dos R$ 33 milhões do programa.   

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