Quero ou não quero cadeira numerada?

9 de agosto de 2013

(Foto de Fabio Peixoto)
Fabio Peixoto e João Pedro Soares

Dentro das 12 novas arenas que vão sediar a Copa do Mundo, lugares numerados, ingressos entre R$ 60 e R$ 400 reais e comida e bebida de custo/benefício duvidoso. Do lado de fora, obras feitas às pressas e acordos com empresas privadas sendo questionados pela população. O torcedor de camadas populares parece estar sendo alijado desse processo, mas promete fazer barulho. Quem ganha com a modernização dos estádios para a Copa no Brasil?

Desde que o país foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2014, gerou-se uma grande expectativa em torno da modernização dos estádios brasileiros. Agora poderíamos, finalmente, ter arenas confortáveis, com ótima visão do campo, fácil acessibilidade e boas condições de segurança, assim como são as europeias. A euforia foi tão grande, que pouco ou nada se comentou nos espaços de debate dos veículos de comunicação sobre a elitização do público desses estádios. Por mais que isso aconteça de forma silenciosa, torcedores e acadêmicos, que estudam as relações do esporte com a sociedade, têm analisado o problema e feito sérias ressalvas à tão celebrada modernização. Com o aumento do preço dos ingressos, mesmo após o término dos grandes eventos, a população de baixa renda terá um acesso muito menor aos jogos. No próprio edital de licitação do Maracanã, palco da final da Copa das Confederações e da Copa do Mundo, está prevista uma mudança do perfil socioeconômico do público.

No Rio de Janeiro, essa mudança é visível desde a venda dos ingressos para a Copa das Confederações, feita somente por plataforma on-line e com prioridade para proprietários do cartão de crédito patrocinador do evento. A retirada dos bilhetes só pode ser feita no centro da cidade, apenas com agendamento (também on-line) ou então no distante e elitizado bairro da Barra da Tijuca.

Na fila para retirada dos ingressos, no lugar dos chinelos, da camisa não oficial e surrada do time, típica dos antigos “geraldinos”; torcedores de terno, roupas de grife e camisas oficiais dos times, elementos que denunciam de forma velada a mudança de perfil econômico de quem frequentará o estádio daqui para frente. Bilheteria no estádio? comprar ingresso na hora do jogo? Nem pensar. O “padrão Fifa” não admite.

Para Lucas Pedretti, coordenador da Frente Nacional dos Torcedores (FNT) – movimento de torcedores que luta por um futebol popular, justo e democrático – no Rio de Janeiro, as consequências da exclusão das camadas populares são nefastas: “A geral do Maracanã, por exemplo, era um dos maiores símbolos de democracia da cidade do Rio de Janeiro. Foi no cimento da arquibancada que diversas gerações se criaram e formaram seus laços de sociabilidade. É impossível conceber o Rio sem o Maracanã ou o Brasil sem o futebol”. Diante das exigências da entidade organizadora da Copa do Mundo, o problema gira em torno do desafio de conciliar conforto e segurança com o respeito à cultura torcedora. Os especialistas consideram complicado.

Modelo europeu como referência

Reforma com preços de ingresso também remodelados (Foto de Fabio Peixoto)
Devido às adaptações realizadas nos estádios para inseri-los no chamado “padrão Fifa”, eles ficaram muito parecidos com as arenas europeias. O que por um lado remete ao progresso, por outro, traz inúmeros problemas ofuscados pelo encantamento da modernização. Para Luiz Antonio Simas, mestre em História Social pela UFRJ, o “descalabro” com o patrimônio público é a primeira dessas consequências. Para ele, a demolição da marquise do Maracanã, que ignorou seu tombamento, é um símbolo desse descaso, além da própria descaracterização do estádio. Segundo Simas, o esporte, que no Brasil foi introduzido pelas elites e passou por um processo de popularização, nos anos 30, como forma de representação popular, passa agora por um retorno ao modelo inicial. O “futebol cultura”, espaço de construção de identidades, está sendo trocado pelo “futebol produto”, em que o espetáculo é o mais importante. Para o historiador, estamos importando o modelo inglês.

No Reino Unido, uma tragédia ocorrida no estádio de Hillsborough, em um jogo entre Liverpool e Nottingham Forest, deixou 96 mortos e 766 feridos. Em reação ao acontecimento, a primeira ministra inglesa Margareth Thatcher redigiu o “Relatório Taylor”, em que creditava a culpa pelos acontecimentos à irresponsabilidade de torcedores do Liverpool, que incluíam abuso de violência e consumo de álcool. A partir daí, houve uma forte restrição à presença dos “hooligans” nos estádios ingleses, que permanece até hoje. Entretanto, no ano passado, a versão oficial sofreu um revés, como explica Pedretti: “Em 2012, o primeiro ministro inglês pediu um duplo perdão em nome do Estado: em primeiro lugar, admitiu que a responsabilidade pela tragédia era inteiramente da polícia, e não dos ‘hooligans’ – como se quis vender na época. Além do mais, pediu perdão pela negligência da própria polícia, que adulterou quase todos os relatórios no sentido de lavar suas mãos e criminalizar os torcedores. É sobre uma mentira, então, que todo o modelo inglês está construído. Thatcher usou a tragédia para implantar um modelo baseado no mais tacanho neoliberalismo, que pregava a elitização como forma de superar a violência. A partir daí, diminuiu a capacidade dos estádios, determinou a colocação de assentos em todos os lugares, aumentou o preço dos ingressos e baniu as torcidas. Ou seja, dificultou o acesso das classes populares, ao mesmo tempo em que facilitou a venda dos direitos dos jogos para a televisão. O resultado nós sabemos: os ‘hooligans’ ainda estão aí, os estádios ingleses parecem cemitérios e seu futebol vai de mal a pior. Não podia ser mais significativa a reação da torcida do Liverpool (clube envolvido na tragédia) à morte de Thatcher: no minuto de silêncio, fizeram um verdadeira festa”.

Ao contrário do que se fez na Inglaterra, na Alemanha, sede da Copa do Mundo de 2006, observa-se o modelo mais bem sucedido no que diz respeito à conciliação entre modernização e espaço para a festa torcedora. Os clubes priorizaram a receita dos sócios torcedores para manterem suas saúdes financeiras estáveis. Dessa forma, passaram a depender menos das receitas de televisão, como ocorre no resto dos países. A grande vantagem dessa estratégia é a possibilidade de os clubes manterem os ingressos a preços baratos, o que resulta em médias de público que lembram as dos estádios brasileiros na década de 90.

O Borussia Dortmund, por exemplo, finalista da última edição da Liga dos Campeões da Europa, principal torneio de clubes internacional, possui uma média de 85 mil torcedores presentes por jogo, o que representa uma taxa de ocupação de 100%. O curioso é que o clube se localiza na cidade de Dortmund, que possui cerca de 580 mil habitantes apenas. Ou seja, em dias de jogos, cerca de 15% da população local está no estádio. Além disso, o clube reserva 25 mil lugares para torcedores que desejem torcer em pé, tremular suas bandeiras e fazer festas pirotécnicas, símbolos da cultura torcedora. O Borussia só consegue ter esse setor popular em seu estádio porque as cadeiras colocadas lá para a Copa do Mundo eram removíveis.

Os especialistas consideram difícil a adoção de um modelo similar no Brasil. Simas afirma que “a Alemanha jogou mais duro com a Fifa”, enquanto o governo brasileiro fez mais concessões aos interesses privados. Bernardo Buarque de Hollanda, doutor em História Social da Cultura pela PUC-Rio e pesquisador do comportamento de torcidas organizadas no Brasil e na França, pensa ser possível. Porém, uma vez que no caso da Arena do Grêmio, onde a principal torcida organizada do clube conseguiu garantir um espaço sem cadeiras, houve um acidente que deixou vários torcedores feridos no setor logo nos primeiros jogos, esta não parece ser a tendência. Para Pedretti, o modelo alemão “serve para mostrar que é possível modernizar sem descaracterizar, mas temos que levar em conta nossas próprias peculiaridades”.

No Maracanã da Copa, ‘jeitinho’ brasileiro e manifestações

Lanchonete no anel externo: novas instalações, velhas práticas (Foto de Fabio Peixoto)
Durante o jogo entre Espanha e Taiti, realizado no Maracanã, eram nítidas as diferenças para um dia de jogo no estádio antigo. A barreira policial montada a 100 metros do local de jogo impede o acesso de pessoas que não possuam bilhetes de entrada. Do lado de fora, voluntários em cadeiras altas, com um megafone na mão, orientam o público que se aproxima. Na entrada, parece que se vai embarcar em um aeroporto: portões largos, bandejas e detectores de metal. O acesso, porém, é rápido, e muitos voluntários ajudam os torcedores a localizarem seus lugares. Há um cheiro de eucalipto artificialmente lançado no ar. O jogo começa e o público brasileiro dá sinais de que não irá engolir a padronização tão facilmente. O Fair Play é a regra, e a Fifa deseja torcedores que não falem palavrão, torçam sentados e aplaudam os bonitos lances. Existem, inclusive, os chamados Stewards, encarregados de chamar a atenção dos mais exaltados. Na prática, vemos uma torcida que resiste: logo no começo do jogo, ocorre a famosa "ôla". A equipe da Espanha é muito vaiada ao entrar em campo. Apesar de toda a segurança, os torcedores pulam as baixar muretas de separação dos setores e ocupam assentos mais caros do que aqueles que compraram. Nas lanchonetes do anel externo, as filas são furadas com certa regularidade, algo totalmente comum em terras brasileiras.

Lei Geral da Copa: garantias para a Fifa, restrições para os torcedores

A Lei Geral da Copa, que deixa os estádios brasileiros sob tutela da Fifa durante as competições futebolísticas, é o instrumento legal que garante à entidade exigir todas as adequações que considerar necessárias para a realização dos eventos. Para Bernardo Buarque, a principal consequência da lei é a padronização do público: “como se passássemos a ter uma grande ‘classe média’ consumidora nas arenas esportivas”. Contudo, faz questão de frisar a influência do poder público sobre o impacto da entidade nas decisões. Simas aprofunda a questão. Para ele, mesmo se não houvesse Copa do Mundo no Brasil, o processo de elitização também aconteceria, porém, com menor impacto. Segundo o historiador, a principal razão para a mudança do perfil socioeconômico dos estádios brasileiros é o interesse de grupos privados, e não somente da Fifa. A Lei Geral da Copa teria como objetivo, então, assegurar esses interesses.

Quando o Brasil parecia viver o ápice da ‘paz social’, devido à entrada de muitos brasileiros na classe média, uma onda de protestos eclodiu justo na época do evento teste para o mundial: a Copa das Confederações. Entre os mais diversos gritos e cartazes dos manifestantes, uma das principais reclamações eram os gastos excessivos com a construção de estádios para o evento, enquanto as condições de serviços básicos, como a saúde e a educação, são consideradas muito ruins para um país que é a sexta economia do mundo. A realização da Copa no Brasil, que já foi motivo de uma enorme euforia, é agora a vilã da população brasileira. Bernardo Buarque relaciona essa decepção com as atitudes da instituição organizadora: “O relativo desinteresse da população pelo torneio decorre do fato de as pessoas tomarem consciência de que a Copa será no Brasil, mas não do Brasil. As imposições da FIFA ganharam tanto vulto que o evento não parece ser nacional. Não se pode chamar o Estádio de Brasília de Mané Garrincha, não se pode usar a caxirola, etc”.

O “legado social e esportivo” dos eventos, visto inicialmente como a razão principal para a realização da competição em terras brasileiras, ganha contornos de conto de fadas. Segundo Buarque, a população passou a perceber que ele se dará somente no aumento do preço dos ingressos e exclusão da maioria da população dos estádios. Portanto, surgem inúmeros questionamentos. Por quanto tempo será possível manter o povo afastado daquilo que mais gosta? Por quanto tempo o futebol brasileiro conseguirá manter sua identidade sem o povo? Da Europa pode vir um recado. A Inglaterra, que optou pelo processo mais excludente, vem perdendo força nas competições internacionais, e isso se refere tanto aos clubes quanto à seleção. Já a Alemanha, onde se percebeu ser possível ter conforto e segurança associados com emoção, dois clubes do país disputaram a final da maior competição de clubes do futebol, e a equipe nacional é considerada uma das favoritas para triunfar no Maracanã, em 2014. Em quem nos espelharemos?

Busca Cadernos

Loading

Quem somos

Minha foto
Cadernos de Reportagem é um projeto editorial do Curso de Comunicação Social da UFF lançado em 3 de outubro de 2010.
 
▲ TOPO ▲
© 2014 | Cadernos de Reportagem | IACS